sexta-feira, 14 de agosto de 2015

Lula e FHC: O desencontro desmarcado



Por Maria Fernanda Arruda – do Rio de Janeiro:

Em tempos, quando os cronistas mineiros eram ainda pouco conhecidos lá pelas areias de Copacabana, o jovem Fernando Sabino tornou-se precocemente famoso com o romance O Encontro Marcado. Leram? Eu li. Um título provocante: Um encontro de dois amantes? De dois amigos, ou uma turma deles? Mais provável fosse um encontro com a vida. Um título que depois de meio século voltou a ganhar atualidade.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras
Nos últimos dias, tomou forma de notícia de jornal a possibilidade de um encontro entre Lula e FHC. Quem teve a ideia, quando, onde, por que? Alguém aventou a conveniência e a possibilidade de se providenciar um encontro, o encontro marcado entre presidentes. Jaques Wagner teve a coragem despolitizada de anunciar seu desejo, o que alguns outros mais tímidos apenas sussurravam. Com isso, oportunista pouco polido, FHC imaginou que poderia se aproveitar de tal descuido infantil das hostes adversárias, tratando de ser, porém, o desastrado contumaz, mostrando-se (com sua má índole) claramente ser um inimigo da Ordem constitucional: não vejo sentindo num encontro (que objetive o que não merece ser conservado, um governo eleito constitucionalmente?).
Trocando em miúdos: viu a pelota à sua frente e o gol escancarado; chutou para as nuvens. O libreto da opereta está agora revelado por inteiro na fala de Mino Carta, onde fica evidente que a falta de sensibilidade do velho sociólogo, capaz de ser apanhado em conversas de um “particular” com seu ajudante de patifarias (como aconteceu no chamado “escândalo do grampo do BNDES), essa ausência de oportunidade das coisas e das falas, continua vibrante e forte.
O encontro foi desmarcado. Lula já sabia das competências de seu sucedido,nem precisou se irritar: “até porque falo com qualquer um”. Ponto final? Página virada? Não, que seria muito açodamento. Ainda existem perguntas: que sentido haveria nesse encontro? O que pretendiam os que quiseram urdir tão estranha trama? O que resultaria disso?
Em primeiro lugar, este jamais aconteceria. Haveria sim um notável desencontro. Vamos relembrar alguns capítulos mais recentes da nossa História?
Lula e FHC encontraram-se algumas vezes no passado
Lula e FHC encontraram-se algumas vezes no passado
Entre 1985 e a eleição de Collor de Mello, o Brasil experimentou a sua “passagem” de país aquartelado para país moderno, incorporando-se ao mundo globalizado. Como isso era o desejo das elites nacionais, os militares, com seu patriotismo e patriotadas de caserna, foram sem mais devolvidos a ela. Imediatamente em seguida, a burguesia nacional, desvencilhada dos homens fardados, podia cumprir sua vocação de apêndice do capitalismo internacional, acomodando seus interesses com os dos grupos multinacionais: definiu-se um programa de “internacionalização” do Brasil. E, para que isso pudesse ser feito, tratou-se de criar o grande vazio político, dentro dos limites de uma democracia consentida, uma esterilização que não foi processo penoso, pois que o exercício da cidadania, muito pouco praticado em todos os tempos de nossa História, passava a ter pela frente e para seu convívio instituições políticas e políticos já devidamente desmoralizados. A prática do “jogo das aparências”, experimentado pela Ditadura não seria mais útil,e foi substituído pelo “mundo do circo”, da mendacidade que permite confundirem realidade e imaginário.
O marketing político assumindo as rédeas do processo político, com a televisão ganhando o papel educador, onde se movimentariam a seu gosto e planejamento personagens maiores e menores. Para consolidação de uma alienação total da consciência política do povo, consolidou-se como bloco monolítico uma “imprensa livre”, criando uma única voz, propagadora da ideologia da modernidade. Os oito anos de FHC consolidaram no Brasil a força modernizadora da globalização. O Estado, e tudo isso que podemos enxergar hoje e sempre camuflaram, foi disciplinado e posto a vestir os trajes menores que o neoliberalismo lhe reservava. Perdeu o controle das finanças da Nação, renunciou ao papel de planejador capaz de oferecer um projeto a ela. O Estado privatizou-se, não apenas com a liquidação do patrimônio das empresas públicas, Sempre que necessário compraram a consciência e a honra de deputados e senadores, para que fosse possível aviltar aquela que já nascera apequenada, a Constituição de 1988 – de passagem, lembre-se que Lula foi o único líder político a se recusar à assinatura. O capitalismo brasileiro se internacionalizou e, como desdobramento, o Brasil renunciou à sua soberania, tornando-se de forma abjeta uma dependência dos Estados Unidos, acompanhando-o em seu banditismo violento, empenhando-se na viabilização da ALCA.
Depois de oito anos de um governo que desprezou o povo,olhando apenas para a banca internacional, mas sem poder mais apresentar resultados nem mesmo razoáveis, depois de três bancarrotas internacionais, com um crescimento pífio da economia, com um desemprego incômodo e assustador, o fracasso retumbante levou à derrota política. O PSDB e FHC revestidos da empáfia tola que sempre deu traços às elites anacrônicas nacionais, deixaram de interessar e foram descartados. Sob todos os aspectos um governo do PT, com a sua previsível vocação para o “assistencialismo”, passava a ser mais interessante, ao fazer mais remotos os riscos de revoltas populares.
Não será demais lembrar que Lula soube como se compor com o sistema, sem renunciar a si mesmo. Sabia dos limites, como se tivesse ouvido e tomado por conselho a observação feita à época por Celso Furtado: “a margem de manobra do novo presidente será muito pequena”. Lula alargou essa margem. É certo que entregou sua política econômica a homens “confiáveis”, segundo os critérios da banca e dos rentistas. Delegou autonomia absoluta ao Banco Central e teve no seu Ministro da Fazenda uma figura que lembra o finado Benedito Valadares. Mas cumpriu o compromisso de retirar milhões de brasileiros da miséria e da desesperança, ao mesmo tempo em que resgatou a dignidade nacional com uma política de relacionamento independente e construtivo com nações de todo o mundo, mas privilegiando a América Latina e a África.
Iniciando-se então as respostas. Que sentido haveria nesse encontro? Absolutamente nenhum, pois seria um desencontro absoluto, de ideias, posturas, ética, sensibilidade política. Uma revisão, mesmo que rápida dos oito anos de governo FHC mostram um momento torpe na nossa História. FHC traiu o Brasil e não há conversa possível com um traidor não arrependido. Haveria, isso sim, um desencontro.
O encontro desmarcado, fica tudo no mesmo lugar de antes? Não, de nenhuma maneira. Todos os que imaginaram ser desejável o desencontro, como algo que nos ajudaria a “sair da crise”, mostraram seu tamanho menor enquanto políticos. Não entenderam nada, são utilitaristas aproveitadores, até que competentes, na medida em que, mesmo não sendo o poder, estão próximos e convivem com o Poder. Comprovaram que o ministério da presidenta e mesmo os seus “homens de confiança” são politicamente primários.
O mínimo múltiplo comum aos dois ex-presidentes é igual a zero. Sendo fiel a si mesmo, respeitando-se e respeitando o povo que o tomou como líder, o nosso amigo Lula não tem nada para conversar com FHC. Aliás, nunca tiveram, nem nos tempos da Vila Euclides, muito menos agora.
Maria Fernanda Arruda é escritora, midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre às sextas-feiras.

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